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Suicídio matou mais policiais do que confrontos em horário de trabalho, em 2018. A rotina violenta, a desumanização do policial e o tratamento da instituição são alguns dos motivos para o suicídio

Por: Mariana Lima

“O policial vive a violência diariamente. Você auxilia em um parto pela manhã e lida com um pai estuprador à tarde. Como isso não afetaria o psicológico de alguém? ”.

O desabafo é do Sargento Militar de Santa Catarina, presidente da Associação Nacional de Praças das Polícias Militares Estaduais (Anaspra) e presidente do Conselho do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Elisandro Lotin.

Em 2019, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública lançou a 13ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em que expôs, pela primeira vez, dados sobre o suicídio de policiais no país.

De acordo com o levantamento, 104 policiais cometeram suicídio em 2018. No ano anterior, foram registrados 73 casos. A maioria dos casos de suicídio ocorre entre policiais militares.

O Anuário ainda aponta que, em 2018, morreram mais policiais por suicídio do que em confrontos no horário de trabalho (87 casos).

“A instituição militar é muito fechada. A sociedade não sabe o que acontece lá dentro. Esse ambiente fechado apenas alimenta o mito do policial herói”, afirma Lotin.

A síndrome do policial herói é vista por ele como um dos fatores responsáveis pelo descuido com a saúde mental.

“É como se estivesse tudo bem em ganhar salários baixos, andar com coletes desgastados, armas inadequadas e viaturas quebradas, afinal você é o herói”, ironiza.

Há 27 anos na corporação, Lotin já passou por acompanhamento psicológico após um quadro depressivo, e sabe como é importante falar sobre a saúde mental.

“O Estado ainda não reconhece os problemas de saúde mental como algo que ocorre devido à profissão. São muitas as barreiras existentes”, esclarece.

A falta de diálogo dentro da corporação também afeta os policiais que buscam o apoio psicológico.

“O policial que busca ajuda é ‘condenado’. A instituição não quer ver o policial que está com problemas, porque enfraquece a imagem de inabalável. Então, quem busca ajuda, de alguma forma, é punido pelo próprio sistema”.

Para o tenente-coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo, Adilson Paes de Souza, a própria estrutura da instituição fomenta esse cenário.

Ele explica que em 1969, durante a Ditadura Militar, foi instituído através do decreto n° 667 que a Polícia Militar seria estruturada da mesma forma que o Exército Brasileiro.

“E mesmo com a redemocratização em 1988, a estrutura da PM continua a mesma. São civis treinados para ser militares, para atacar o inimigo”.

Paes é pesquisador de segurança pública e doutorando pelo Instituto de Psicologia da USP, tendo como linha de trabalho a questão da violência na formação do policial.

“Os ritos de passagem, que são situações de extrema humilhação, funcionam como um meio para forjar esses ‘guerreiros’. Criam essa imagem do policial pronto para tudo”.

Ao longo de sua carreira, ele viu colegas se suicidarem. Um dos casos foi devido a uma humilhação interna.

“Eu me pergunto: a instituição se importa com esse policial? Alguém treinado para pensar que é superior não vai conseguir pedir ajuda”.

A vivência na corporação e as entrevistas que realiza como pesquisador trazem a percepção de como o sistema vem prejudicando a todos.

“Cada policial vai lidar com o sofrimento da sua maneira. Então, qualquer ação de um civil pode resultar em uma ação violenta desproporcional. O policial acaba sendo vítima da violência que provoca. É desgraça para todo lado e ninguém sai vencedor”.

Em uma das entrevistas que vem realizando para o seu trabalho de doutorado, Paes chama atenção para um dos desabafos que ouviu.

“Esse policial me contou que estava mostrando todos os sinais de que não estava bem, mas que ninguém estava olhando”.

A importância de falar

Antonio Ferreira de Menezes é oficial da reserva da Polícia Militar e atua como coordenador do setor de Psicologia da Associação de Policiais Militares Deficientes Físicos de São Paulo (APMDFESP) há 7 anos.

A vivência na corporação mostrou a ele a importância do acompanhamento psicológico. “A instituição ainda não tem esse cuidado com os policiais. Quando eles vêm até o serviço já estão em um estado crítico, alguns em estado depressivo avançado”.

Essas ocorrências se tornaram familiares para a pesquisadora e coordenadora do Instituto de Pesquisa Prevenção e Estudos em Suicídio (IPPES), Dayse Miranda.

Por quatro anos, Dayse e um grupo de psicólogos da Polícia Militar do Rio de Janeiro realizaram uma extensa pesquisa que resultou no livro ‘Por que policiais se matam?’ (2016).

Além de trazer dados, Dayse ouviu a história de policiais que voluntariamente relataram suas experiências.

“A instituição não abre espaço para o tema. Não há um acolhimento, e sim uma busca para endurecer o policial. Não se considera a condição humana da pessoa que veste a farda diariamente”.

Foram muitos os relatos que Dayse ouviu para contextualizar o cenário de sua pesquisa. Um dos entrevistados, por exemplo, contou sobre uma incursão em uma favela no Rio.

“Ele estava subindo o morro quando um colega ao seu lado levou um tiro na cabeça. O sangue foi nele e em outro colega, que entrou em pânico. O comandante que estava lá apenas disse para ele se limpar e continuar subindo”.

Dayse considera que essa exposição à violência diária, sem ser trabalhada, leva a uma latência emocional, como ocorreu com o comandante.

“Ele não se choca mais, e acaba banalizando o choque dos outros. A sociedade precisa entender que sem o devido apoio esse profissional vai surtar. O poder público ainda não entendeu o peso de um policial doente na rua”.

Outro ponto abordado pela pesquisa foi o impacto do suicídio entre os colegas de corporação. “Eles sofrem muito, e é uma perda que não é considerada. Eles não têm tempo para trabalhar essa perda, porque no dia seguinte têm que estar na rua trabalhando”.

O coordenador do setor de psicologia da APMDFESP, Antonio Menezes, relata que esses profissionais acabam buscando suporte entre si, em vez de procurarem suporte psicológico profissional.

Apesar disso, a fila para receber atendimento psicológico na APMDFESP é grande. “Nos casos mais graves o policial relata que já apontou a arma para a cabeça ou a colocou dentro da boca pensando em atirar”.

De acordo com um relatório da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, em 85% dos casos de suicídio de policiais no estado foi utilizada a arma de fogo do profissional.

Em São Paulo, foram registrados 78 casos de suicídio entre 2017 e 2018, sendo que 56 deles ocorreram entre policiais militares.

O número pode apontar para uma epidemia, com base na taxa estipulada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) de 10 suicídios a cada 100 mil habitantes.

O relatório da Ouvidoria do Estado de São Paulo estima um total de 111 mil policiais na ativa. Essa percepção resulta em uma taxa média de 23,9 suicídios a cada 100 mil.

Uma pesquisa realizada pelo GEPeSP em 2015 revelou que, entre um grupo de 18.007 policiais militares, 3.225 pensaram em cometer suicídio, mas não tentaram, e 650 tentaram.

Entre os policiais que pensaram, mas não tentaram cometer o suicídio, 61,6% responderam que não comentaram com ninguém. Entre os que tentaram, 43,8% também não falaram para ninguém do plano de tirar a própria vida.

“Se todos os policiais resolvessem procurar o atendimento psicológico, a instituição não daria conta, porque não tem estrutura”, afirma Menezes.

Na pauta política

No último ano, a codeputada pela Bancada Ativista Mônica Seixas abriu o gabinete do grupo na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo para ouvir os policiais.

Através do contato com esses policiais e tendo a percepção dos impactos de um policial doente nas ruas, Mônica, em coautoria com outros deputados, formulou o Projeto de Lei 1.051/2019.

O PL tem como proposta a ampliação do atendimento psicológico oferecido pela instituição aos policiais. Também estipula que o atendimento passe a ser realizado assim que o profissional passar por uma situação de violência ou ameaça, e que o atendimento seja oferecido também à família do policial.

“Essa é uma profissão de alta tensão. Eles enfrentam situações extremas nas ruas e ainda precisam lidar com os ciclos de humilhações que ocorrem internamente”, aponta Mônica.

Ela revela que é justamente a formação do policial que dificulta o acompanhamento psicológico.

“Eles não querem ir porque temem ficar marcados como fracos. Eles veem um colega morrer ou matam alguém e sentem vergonha de contar que aquilo está os afetando”.

A codeputada ressalta que esses profissionais veem em suas carreiras o objetivo de suas vidas. O medo de serem afastados e de perderem benefícios atuam como obstáculos.

“A população não enxerga o policial como um ser passível de adoecer. Não se percebe como a saúde mental pode impactar no trabalho deste profissional”.

Mônica considera que a aprovação do PL 1.051/2019 – no momento em tramitação de urgência – pode melhorar um dos aspectos do cotidiano policial, mas que são necessárias mudanças na instituição.

“O policial não vai sofrer em público. Não vai chegar em casa e contar para algum familiar o que está acontecendo. Eles são treinados para esconder isso. E vemos o resultado disso em ações desastrosas da polícia”.

O que dizem as instituições

Em nota, a Polícia Militar do Estado de São Paulo informou que considera o tema abordado pela reportagem relevante e atual e que merece atenção.

A Polícia Militar dedica especial atenção aos cuidados psicológicos dos policiais militares que integram o quadro da Instituição, fornecendo a eles todo o suporte necessário por meio do Sistema de Saúde Mental da Polícia Militar. Em razão das características da atividade profissional, a Instituição entende como absolutamente indispensável o cuidado com a saúde de seu efetivo, de modo a garantir a continuidade do serviço prestado com grande qualidade à sociedade”.

Já a Secretária de Segurança Pública (SSP) informou em nota que “a Polícia Militar conta com o Centro de Atenção Psicológica e Social (CAPS) e 35 Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS), com programas preventivos na área de saúde mental, palestras, atendimentos psicológicos individuais e em grupos”, enquanto a Polícia Civil tem a disponibilidade do serviço da “Divisão de Prevenção e Apoio Assistencial, no Departamento de Administração e Planejamento (DAP), que conta com psicólogos e assistentes sociais, que ficam disponíveis para atender os policiais”.

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