DA QUEBRADA À ACADEMIA: A LUTA DOS JOVENS PERIFÉRICOS NAS UNIVERSIDADES

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Vidas transformadas pela educação: Marcio Henrique vai para Harvard, Ravena Carmo quer formar educadores populares na Universidade de Brasília e Thiago Torres, conhecido como ‘Chavoso da USP’, tornou-se uma inspiração para os jovens periféricos

Por Isabela Alves

A luta por mais inclusão nas universidades brasileiras é constante. Paulo FreireAnísio Teixeira e Darcy Ribeiro foram alguns dos pensadores brasileiros que lutaram por uma educação de qualidade e gratuita para todos. Mas o país ainda tem muito a avançar neste sentido.

De acordo com um relatório divulgado pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), o Brasil é um dos países com menos pessoas com Ensino Superior completo e também possui uma das menores taxas de doutores, entre 45 países membros ou parceiros da OCDE. Apenas 21% dos brasileiros de 25 a 34 anos têm Ensino Superior completo, enquanto a média dos países que fazem parte da OCDE é em torno de 44%.

Outro dado preocupante revela que, apenas entre 2014 e 2018, o investimento na educação do país caiu 56%, indo de R$ 11,3 bilhões para R$ 4,9 bilhões por ano.

Apesar de tudo isso, há também boas notícias envolvendo a educação brasileira. Um exemplo disso é que, pela primeira vez na história, as pessoas pretas e pardas, que compõem a população negra, são maioria (50,3%) no ensino superior em universidades e faculdades públicas brasileiras. 

Nesta reportagem, reunimos as histórias de três jovens que cresceram em periferias de diferentes cidades brasileiras e que conseguiram realizar o sonho de ingressar em universidades públicas, e de ir muito mais longe do que boa parte da sociedade esperaria. São também jovens que sabem que suas trajetórias ainda não são as mais comuns para quem nasce em bairros pobres e que estão tentando ajudar outras pessoas da periferia a chegarem ao ensino superior.

Da periferia de São Paulo para Harvard

Marcio ao lado do professor Marcus Magrela (Arquivo Pessoal)

Marcio Henrique de Jesus Oliveira, de 22 anos, cresceu no bairro de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Filho de um metalúrgico e de uma vendedora, foi o segundo filho de quatro, e foi criado pelos avós, catadores de materiais recicláveis.

Durante a adolescência, sua família passou por diversas dificuldades financeiras e parte da sua renda era completada com a ajuda de amigos da Igreja Congregação Cristã. Para ter alguma independência financeira, Marcio começou a trabalhar aos 13 anos.

“Eu não ia para o crime, então trabalhar cedo foi a única saída que eu tive para conquistar as minhas coisas”. Ele trabalhou em diversas funções: distribuindo panfletos, empacotador, garçom, vendedor de instrumentos e até carregador de caminhão.

Com o tempo, o trabalho acabou o afastando dos estudos. A possibilidade de entrar em uma universidade nem passava pela sua cabeça, pois para ele ter roupas e tênis novos se tornou sinônimo de poder. “Os jovens pensam: vou sair da escola para conseguir mais coisas. A escola acabou se tornando um shopping center, onde eu ia para desfilar e não para prestar atenção nas aulas”.

Durante o ensino médio, um professor de história deu um alerta para sua turma: sem estudo, eles não teriam o poder de escolha de trabalho e nem poderia discutir com o patrão, já que eles poderiam ser substituídos a qualquer instante para aquela função.

“Ele disse que o que estávamos fazendo era vazio. O mundo da escola ia virar pó assim que a realidade chegasse. Quando a gente estivesse pegando o metrô e o ônibus lotado, pouco importava a roupa que estaríamos usando”.

Quando Marcio percebeu o tempo que perdeu, foi doloroso. Ele voltou a se dedicar aos estudos apenas no 3º ano do Ensino Médio, época em que também entrou para o MedEnsina, cursinho pré-vestibular promovido por estudantes de medicina da Universidade de São Paulo.

Ao chegar lá, notou que pessoas da sua idade estavam dando as aulas e mais uma vez veio o descontentamento com o mundo. “As pessoas que são ricas têm muitas facilidades. Eu não me identificava com ninguém daquela universidade, a não ser os faxineiros e porteiros. Achei que aquele não era o meu lugar”.

No primeiro ano do cursinho, ele teve que conciliar dois empregos com o estudo. Os colegas de trabalho e professores perceberam a sua dificuldade diária e passaram a comprar café, lanche e até emprestaram o bilhete único (bilhete usado no transporte público em São Paulo) para que Marcio não desistisse das aulas.

Marcus Agrela foi um dos professores que fizeram toda a diferença na sua vida. Ele passou a custear o que fosse necessário para que Marcio continuasse estudando. Mais que isso, ele estimulou o senso crítico do estudante e o incentivou a consumir literatura, mostrando os escritores que mais amava. Uma das análises literárias mais marcantes para Marcio foi do livro ‘Memórias Póstumas de Brás Cubas’, de Machado de Assis.

Após fazer o cursinho, Marcio foi aprovado em medicina na Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em 2019. No entanto, com a notícia da aprovação, ele não sentiu tanta alegria quanto pensou que iria sentir. Ele olhou para trás e pensou em todas as pessoas que não conseguiram aquela vaga e até nos seus colegas de escola que abandonaram os estudos por falta de condição ou incentivo.

A aprovação marcou o início de uma importante jornada. “Eu não podia me contentar só com isso. Quero ampliar a minha vitória para outras pessoas como eu, pois quem sustenta a faculdade não está dentro dela”. Junto com um amigo, ele criou um cursinho online gratuito para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Hoje a plataforma já conta com mais de quatro mil alunos inscritos de todo o Brasil. Seguindo os passos do professor que o inspirou, Marcio dá aulas de literatura.

Durante uma aula no segundo semestre de faculdade, Marcio ficou sabendo do programa ‘Pesquisando em Boston’. Promovida pela Universidade de São Paulo (USP), a iniciativa leva todos os anos de 12 a 15 alunos para Harvard, uma das universidades de maior prestígio no mundo, e que fica nos Estados Unidos.

Com a ajuda do professor Magrela, a história de Marcio chegou a Paulo Saldiva, criador do programa, e o jovem conquistou uma vaga.

Marcio não tinha dinheiro para realizar a viagem, então fez uma vaquinha online para custear a viagem e conseguiu R$ 85.370 no financiamento coletivo. Até janeiro de 2021, ele irá para Harvard estudar sobre imunologia de tumores, com a professora Ana Anderson.

“É uma oportunidade gigantesca, mas que só foi possível através das doações. Isso fez aumentar ainda mais a minha dívida com a sociedade, pois não acho justo que só eu tenha essa oportunidade”. Marcio lembra de um trecho da música do Racionais MC’s que diz “é preciso fazer uma escolha: sonhar ou sobreviver” e afirma que quem sonha no Brasil tem privilégio de classe.

“Como diria Darcy Ribeiro, a crise da educação no Brasil não é uma crise: é um projeto, e que está dando certo. Nossa responsabilidade é destruir esse projeto, pois ele impede as pessoas de agirem. Não posso esquecer de onde eu vim, mas é preciso que os jovens saibam que roupas não valem mais que ideias”. 

De unidade de internação para a Universidade de Brasília

Ravena com os livros que são fruto do projeto ‘Poesia nas Quebradas’ (Arquivo Pessoal)

Ravena Carmo, de 30 anos, é moradora da periferia de Planaltina, localizada no Distrito Federal. Filha de mãe solo e criada pelos avós, ela passou a infância brincando na rua. Aos 12 anos, envolveu-se com o tráfico de drogas.

Ela passou pelas 6 medidas aplicadas na Unidade de Internação do Sistema Socioeducativo do DF, desde a advertência até a prisão. Da última vez em que foi presa, aos 15 anos, passou 2 anos e 11 meses. Durante todas as internações, Ravena teve problemas com a direção da unidade e chegou até a fazer rebeliões no local queimando colchões.

No entanto, esse lugar foi essencial para que ela revisse alguns conceitos na sua vida. Para a maioria dos profissionais do local, ela não iria passar dos 18 anos. Mas foi nesse espaço que ela conheceu a poesia, o teatro e o grafite. Um professor de matemática em especial foi essencial para que ela voltasse a se interessar pelos estudos.

“Um dia, uma psicóloga me disse que iria me ver nas universidades. Fiquei feliz, mas ao mesmo tempo confusa, porque ir para a universidade nunca foi uma possibilidade para mim”, conta. Depois dessa conversa, a equipe da unidade de internação levou Ravena e jovens para uma visita na Universidade de Brasília (UnB).

Ravena mal podia acreditar que um espaço tão importante como aquele era próximo da sua casa. Assim que cumpriu a sua pena e foi liberada da casa de internação, ela não tinha nem roupas, mas o sonho de entrar na universidade tomou conta dela. “Eu andava com a mão para trás e com a cabeça abaixada, porque passei muito tempo assim. Foi difícil a minha readaptação, principalmente para retomar os estudos”.

Passou a trabalhar em uma papelaria, e o que ganhava em um mês lá era o equivalente ao que ganhava em um dia no tráfico. Mesmo assim, Ravena estava com a mente feita e decidiu que nunca mais voltaria a ser presa.

Ela reprovou na primeira vez em que tentou o vestibular da UnB, mas passou em 1º lugar na segunda tentativa, no curso de ciências naturais, aos 25 anos. “Foi um divisor de águas na minha vida, mas sofri com a evasão escolar. Os professores falavam de tabela periódica e eu ia pro banheiro chorar, porque não tive uma base. Eu tive que estudar o triplo do que os meus colegas de sala”.

Ravena também enfrentou diversas dificuldades financeiras, já que tinha que decidir entre comprar os livros ou a sua comida. Ela tirava xerox de todos o livros e também utilizava os computadores da universidade para fazer os trabalhos. “Tudo conspirava para que eu desistisse, mas eu prometi para mim mesma que só sairia de lá com o meu diploma”.

Durante um projeto de extensão da universidade, ela se candidatou para atuar como professora nas unidades de educação do DF. Um dos momentos mais emocionantes da sua vida foi retornar àquele local como educadora, agora recebendo um tratamento digno e humano.

Começou a fazer diversos projetos com aqueles jovens, sendo que um dos destaques foi o ‘Poesia nas Quebradas’ que desde 2015 divulga a poesia marginal da região. Além disso, ela mobilizou várias pessoas da UnB para grafitar o campus para que a universidade tivesse a cara dos seus alunos.

O seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) abordou a evasão escolar e a violência, e Ravena decidiu contar a história de uma escola que gosta de chamar de “escola de artistas invisíveis”, que conta com 70 alunos. Os alunos que iam para esse projeto só estavam lá por conta da assistência social, mas logo que viram Ravena com as tatuagens e cabelo colorido, eles se identificaram e passaram a se dedicar.

Ravena se considera uma educadora popular. O termo, inventado por Paulo Freire, significa transmitir e adaptar o conhecimento para que todos os alunos entendam. “Foi um processo lindo, porque através da poesia eles poderiam falar como se sentiam”, diz. A experiência foi bem sucedida, a escola abriu o projeto para todos os seus alunos e também produziu um livro com os poemas.

“Desde a primeira infância, nós temos os nossos direitos roubados, então também é um ato político estar dentro das universidades”. Para o futuro, Ravena pretende mapear a literatura marginal do Distrito Federal e fazer um mestrado para formar mais professores na UnB como ela.

Da periferia de Guarulhos para a Universidade de São Paulo

Thiago Torres se tornou conhecido como o ‘Chavoso da USP’. (Foto: Jornal do Campus USP)

Filho de pais nordestinos, Thiago Torres, de 20 anos, cresceu na Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo. Seus pais possuíam uma loja que vendia panos, mas o negócio acabou falindo e a família foi despejada da casa, já que não tinha dinheiro para pagar o aluguel. Por algum tempo, eles dependeram de doações da igreja para se alimentar.

A família passou a vender os panos na feira, e Thiago e o irmão auxiliavam os pais durante o serviço. Os dois sempre estudaram em escolas públicas da região. “O que diferencia a minha trajetória da de muitos meninos da periferia foi ter um pai presente. Apesar disso, eu tive outros problemas, como o alcoolismo do meu pai e um relacionamento ruim com a minha mãe. A maioria dos problemas que a gente pode esperar de uma família desestruturada periférica, eu tinha”, conta.

No entanto, Thiago afirma que os problemas do pai eram consequências do seu passado. Após a morte do avô de Thiago, sua avó se casou novamente com um homem que odiava o pai de Thiago. Após uma tentativa de homicídio, o pai de Thiago fugiu de casa e teve que morar sozinho aos 13 anos.

A situação mudou a partir do momento em que o pai voltou a se interessar pelos estudos, aos 52 anos de idade. “Eu fui criado sabendo que estudar era importante e foi meu pai que me passou esses valores. É uma coisa básica, mas que não está presente nas famílias da periferia. Geralmente o estudo não mostra nenhum resultado de imediato, então por isso trabalho é muito mais valorizado”. 

Durante a sua adolescência, a família se mudou para a Guarulhos, na Grande São Paulo, e a dedicação de Thiago aos estudos se intensificou. A notícia de que foi aprovado em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo veio como uma surpresa para o jovem, já que ele não conhecia a USP e portanto não tinha a perspectiva de entrar nela. Ele só foi entender aquele novo mundo a partir do momento que passou a frequentar as aulas e conhecer o local.

Thiago relata que apesar de esta ser uma das maiores conquistas da sua vida e para a sua família, muitas pessoas o desvalorizam pela escolha do curso, já que essa não é uma área bem remunerada no país.

Com a sua nota, ele poderia ter escolhido direito ou engenharia, mas decidiu seguir o seu sonho, já que desde os 15 anos ele passou a querer entender melhor o seu lugar na sociedade, estudando sobre feminismo, movimento negro e a sua sexualidade.

“Uma pessoa da periferia se formar no ensino médio já é uma vitória. Fazer uma faculdade é uma vitória mil vezes maior. Então, quando entrei na USP, foi uma vitória para todos ao redor”, diz. Thiago conta que as mudanças na sua vida estão sendo intensas e que está sempre estudando para aprender mais, já que entrou ainda muito imaturo na universidade.

Em abril de 2019, enquanto estava cursando o segundo ano da faculdade, ele fez um post que viralizou nas redes sociais. No texto, ele falou sobre a diferença entre os dois mundos que vivia: “periferia pro centro, do centro pra periferia, da pobreza pra riqueza. Ver duas realidade tão diferente, tão contrárias na sua frente, a dos privilegiado e a dos desfavorecido mexe muito com a sua cabeça mano…”.

O texto foi feito com o objetivo de atingir desde os intelectuais da universidade, até os jovens periféricos que não se interessam pelos estudos. Thiago hoje em dia usa a sua imagem para falar sobre a importância de ocupar esse espaço, já que além da emancipação intelectual, a universidade pode abrir mais portas para jovens da periferia.

“Historicamente falando, a universidade forma intelectualmente a classe dominante para que esta mantenha o seu status, enquanto a periferia fica com a parte da mão de obra barata. Ver um preto, pobre, periférico, da classe trabalhadora intelectualizado é algo revolucionário. A gente está mexendo com as estruturas de um sistema que não quer que a gente evolua de jeito nenhum”, conta.

Thiago aponta que ainda sofre preconceito por ser negro, de escola pública e até pelo estilo funkeiro. Os olhares de julgamento vêm de todos os lados: da polícia até os próprios profissionais da universidade e alunos.

Atualmente, ele possui um canal do Youtube e produz conteúdo para incentivar mais jovens a buscar conhecimento. “A gente já tem barreiras pela falta de autoestima. Em primeiro lugar a gente tem que acreditar em nós, que a gente tem valor e que a gente é inteligente. A gente passa por várias dificuldades: seja a escola que não ensina direito, a família desestruturada ou conciliar o estudo com o trabalho, mas a gente não pode desanimar. Não é fácil, mas vamos tentar superar esses problemas coletivamente”.

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